Morreu nesta segunda-feira, 28, no Hospital Copa D'Or, aos 74 anos, o jornalista Marcelo Beraba, que ao longo de mais de cinco décadas sintetizou o planejamento, a qualidade de apuração e a ética no jornalismo nacional. Em todos os veículos por onde passou - O Globo, TV Globo, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e Estadão - nas redações do Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, deixou a marca inconfundível da organização e da integridade na busca pela informação, sem armadilhas apelativas. Parecia estar sempre um passo além da notícia.
Iniciou a carreia em 1971, como repórter do jornal O Globo, ainda concluindo o curso de Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Lá, publicou o furo de reportagem que ajudou a mudar os rumos do País. O ano era 1981 e, apesar da anistia política de dois anos antes, o Brasil ainda vivia sob o regime militar quando uma bomba explodiu dentro do carro ocupado por dois militares do Exército no estacionamento do Riocentro, onde milhares de jovens acompanhavam shows de música do 1º de Maio, embalados pelo ideal de redemocratização.
A explosão matou, na hora, o sargento Guilherme do Rosário e feriu gravemente o capitão Wilson Machado, agentes do Doi-Codi. Beraba foi um dos primeiros repórteres a chegar ao local e acabou conseguindo, com um dos médicos que acompanharam o atendimento hospitalar do capitão Wilson, o filme com as imagens da cirurgia. As fotos, junto com a informação vinda de Brasília de que eram duas e não apenas uma bomba, serviram para comprovar que a intenção dos militares era forjar um atentado que seria atribuído a comunistas para evitar o processo de retorno ao regime democrático.
Aquela cobertura jornalística foi fundamental para o movimento Diretas, Já, deflagrado em 1984. Anos mais tarde, em entrevista à Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), entidade que idealizou e ajudou a fundar em dezembro de 2002, Beraba definiu o Caso Riocentro como exemplo da importância da imprensa na defesa do Estado democrático de direito, sem destacar sua contribuição pessoal, mas a cobertura diligente dos jornais, como um todo.
"A definição mais aceita de jornalismo investigativo é a que condiciona o trabalho jornalístico a uma investigação própria, relevante e que se empenha em desvendar aquilo que algum poder tenta ocultar. Este foi o caso do Riocentro, em que a imprensa trabalhou sozinha, sem ajuda do Ministério Público, de juízes, das polícias - todas estas instituições e o governo militar estavam empenhados em impedir o nosso trabalho e fazer a sociedade crer numa farsa. A investigação do atentado terrorista do Riocentro foi exemplar e contribuiu para o fim da ditadura militar".
A Abraji nasceu da preocupação com a liberdade de imprensa e do aperfeiçoamento das técnicas de jornalismo investigativo. Os temas já norteavam as discussões que Beraba travava há algum tempo com um grupo de jornalistas reunidos por e-mail quando o assassinato de Tim Lopes, da TV Globo, e um seminário do Centro Knight para o Jornalismo nas Américas para debater o caso foram o estopim para tirar a ideia do papel. Tim Lopes foi descoberto por traficantes quando apurava, disfarçado como costumava fazer, a exploração sexual de menores em um baile funk da favela de Vila Cruzeiro, no Complexo do Alemão. Foi torturado, teve membros amputados e queimado ainda vivo.
"Durante o seminário, vários de nós voltamos a nos perguntar por que não temos ainda no Brasil uma instituição formada e mantida por jornalistas, independente (...) Uma entidade que fosse voltada principalmente para o trabalho de crescimento profissional dos jornalistas, o que significa um respeito à sociedade que nos cobra um jornalismo de qualidade", escreveu, no e-mail que deu a partida para a criação da entidade, da qual foi o primeiro presidente e que há 23 anos tem contribuído para o aprimorar e preservar o jornalismo, acumulando prêmios como o de Excelência em Jornalismo do ICFJ (International Center for Journalism), de Washington, EUA.
A tarefa de guardião da ética no jornalismo, que tomou para si, era quase uma obsessão. Ocupou, por mais de dois terços de sua trajetória profissional, postos de comando em diferentes redações, como editor, ombudsman e diretor de sucursais e nessas funções desenvolveu técnicas meticulosas no planejamento de grandes coberturas e era extremamente rigoroso com a checagem de dados, muito antes da explosão das fakes news e das redes sociais. Nas cobranças por precisão era severo, mas nunca desrespeitoso, ao contrário, com frequência baixava o tom de voz.
No Estadão, foi editor-chefe e diretor das sucursais do Rio de Janeiro e Brasília ao longo de 11 anos, até 2019.
Era adepto da estruturação minuciosa de coberturas com a maior antecedência possível - às vezes, meses - e, mesmo quando surpreendido pelos fatos, sabia como poucos assumir o distanciamento crítico necessário para avaliar corretamente sua dimensão.
Quando o movimento que entrou para a história como as "Jornadas de Junho", de 2013, não passava de protestos contra o aumento das passagens de ônibus urbanos, primeiro em São Paulo e depois no Rio, Beraba dirigia a sucursal carioca do Estadão. Deixou a redação algumas vezes para acompanhar de perto as manifestações que, foram assumindo um caráter mais complexo, com as depredações dos "black blocs" e protestos "contra tudo". Antes mesmo dessa exacerbação, orientou a cobertura sob a ótica de que aquele fenômeno iria mudar a história. Hoje, alguns especialistas situam naquele momento o processo embrionário da polarização política e social do País.
Era o diretor da sucursal de Brasília em 2017 quando o jornal revelou a descoberta da lista dos inquéritos abertos no Supremo Tribunal Federal contra políticos - ministros, senadores, deputados, governadores e tantos outros de alto escalão - investigados na Lava Jato. A relação, que ficou conhecida como "A Lista de Fachin", continha 83 decisões e despachos do então ministro Edson Fachin, relator do caso. Mais uma vez, dedicou-se não apenas a organizar como seria publicada a informação, primeiro no portal da internet, como convinha a uma concorrência jornalística já digital, mas também definindo prioridades para depois da publicação do furo de reportagem.
O mesmo rigor dedicava aos mais diferentes segmentos, inclusive a eventos esportivos, como Copa do Mundo e Olimpíadas. Sob qualquer viés lá estava Beraba, de caneta em punho, reunido com editores e chefes de reportagem, traçando no papel as estratégias de cobertura. Alguns desses papeis ele manteve, em acervo pessoal, como se fossem um manual. O interesse genuíno permaneceu mesmo depois de se despedir de redações. Estava elaborando a ideia de escrever um livro sobre técnicas de apuração quando descobriu o tumor no cérebro, em março deste ano.
Era um dos tipos mais agressivos de câncer e na cirurgia feita em abril não foi possível retirar todo o tumor. Durante a fase inicial do tratamento, Beraba passou a ler tudo o que podia sobre o cérebro e suas funções e estava fascinado com o que descobria. "A gente pensa que manda na nossa vida, mas não manda nada. Quem manda é o cérebro", dizia.
Com a mesma disciplina passou a organizar o tratamento, com as filhas e a companheira de mais de três décadas, Elvira Lobato, jornalista muitas vezes premiada. Elvira que se dedicou integralmente a ele nos quatro meses de luta contra o câncer, disse que Beraba se manteve "incrivelmente calmo" até o fim. Na última internação, que durou cerca e um mês (faz um mês nesta quarta, dia 30), lia em voz alta "O reino deste mundo" de Alejo Carpentier, que narra a história da independência do Haiti sob o ponto de vista dos escravos revoltosos, no fim do século XVIII. Leitura interrompida com frequência por Beraba para um ou outro comentário sobre fatos históricos. Ele ainda guardava na memória fatos, detalhes de reportagens e até passagens de livros da extensa bibliografia que consumiu.
Nascido no Rio de Janeiro de 1951, quando a cidade ditava a cena cultural e política do País, como a capital federal em plena modernização, Marcelo Beraba não fugiu ao que se convencionou chamar de essência carioca: o gosto pelo samba, pelos botequins onde se debate sobre tudo e sobre todos, e pelo futebol, como apaixonado torcedor do Fluminense. Mas, a quilômetros de distância da figura do malandro carioca cultivado pelo imaginário popular.
Estava mais próximo à sisudez de um padre, um dos apelidos que os amigos usavam - quase sempre às escondidas - em referência ao curto período de seminarista na juventude.
Mas o cognome que lhe cabia à perfeição era o de mestre. Assim costumava ser chamado, um pouco porque nos primeiros cargos de chefia era assim que se referia a quem quer que fosse para orientar uma cobertura. Depois, e principalmente, porque foi de fato o mestre de gerações de jornalistas. Vai deixar saudades nas redações, e em todos os que tiveram o privilégio de sua convivência.
De dois casamentos teve duas filhas, Ana Luíza e Cecília, e outros dois que a vida lhe trouxe, João e Olívia, que deram a ele os três netos por quem era apaixonado.