'Está guardado, se preferir levo hoje', escreveu no WhatsApp o advogado Roberto Zampieri ao desembargador João Ferreira Filho, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. A citação 'está guardado' supostamente se refere a uma propina de R$ 250 mil para o magistrado em troca de uma sentença.
A mensagem, enviada em 23 de novembro de 2023, faz parte de uma coleção de diálogos trocados entre o próprio desembargador e Zampieri, apontado como o 'lobista dos tribunais' - doze dias depois, em dezembro de 2023, dia 5, ele foi assassinado a tiros à porta de seu escritório em Cuiabá.
João Ferreira, sob suspeita de ligação com esquema de venda de sentenças na Corte estadual, nega a prática de atos ilícitos.
São 89 mensagens reunidas pelos investigadores apenas no período de 8 de novembro a 5 de dezembro de 2023, média diária de 3,5 conversas entre o lobista e o desembargador. O conteúdo dos diálogos é peça decisiva no Processo Administrativo Disciplinar instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça.
O ministro Mauro Campbell, corregedor nacional de Justiça, vê 'relevantes indícios de desvios de conduta e afronta a deveres funcionais' por parte de João Ferreira.
Ao propor a prorrogação do afastamento cautelar do desembargador, Campbell alertou para o 'risco ao interesse público' e que o retorno de João Ferreira à Corte de Mato Grosso pode restabelecer a prática de atos de corrupção e de lavagem de dinheiro ilícito.
"O panorama indiciário, com menções ao pagamento de vantagem indevida ao desembargador João Ferreira Filho, extraídas de diálogos travados entre Roberto Zampieri e terceiros, ou, ainda, entre o advogado e o próprio magistrado, justificam a manutenção da ordem de seus afastamento", assinala o ministro corregedor.
Na avaliação de Campbell, existe o risco de o desembargador 'eliminar provas de sua atuação, caso permaneça no exercício das funções'.
"Todos estes gravíssimos elementos indiciários reforçaram a percepção desta Corregedoria Nacional de que, de fato, muito provavelmente, o desembargador auferiu vantagem indevida para proferir decisões judiciais, atuando, em um momento subsequente, para dissimular o produto do ilícito por intermédio de terceiras pessoas, sendo a abertura de procedimento administrativo disciplinar em seu desfavor, portanto, medida que se impõe", argumenta o corregedor.
O Estadão teve acesso ao acervo de mensagens - parte delas já havia sido divulgada, outras ainda não eram conhecidas.
Elas foram todas resgatadas via o software 'Cellebrite Reader', fornecido pela Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso.
O conteúdo dos diálogos representa 'indícios robustos de parcialidade na atuação' do magistrado, segundo conclusão de Campbell, o corregedor.
O desembargador está afastado das funções desde agosto do ano passado. Ele teria recebido propinas - entre dinheiro em espécie, relógios de luxo e outros mimos de valores milionários - em troca de decisões favoráveis no interesse de Zampieri e de outros advogados.
No dia 14 de novembro de 2023, João Ferreira escreveu ao lobista e depois deletou o texto. Os investigadores deduzem que, pela resposta de Zampieri, o magistrado teria demonstrado irritação com o atraso do repasse da propina de R$ 250 mil. 'Sim senhor, eu achei que era para juntar tudo, somente isso', procurou se justificar o lobista. "Por isso nem falei nada ontem, somente isso. Está guardado."
'Apenas não quis levar picado'
Zampieri seguiu se desculpando, provavelmente porque ainda não tinha reunido o total do valor acertado com o magistrado, segundo os investigadores. "Não precisa ficar chateado comigo, apenas não quis levar picado."
Ao final da mensagem, o lobista procurou tranquilizar o desembargador. "Mas está guardado, se preferir levo hoje ou transfiro."
Os investigadores supõem que a propina para João Ferreira se deu no âmbito de um recurso - agravo de instrumento - distribuído para a 1.ª Câmara de Direito Privado do TJ, da qual o desembargador fazia parte.
'Outra coisa, desembargador, aquele caso que pedi para o senhor, seria possível o sr apreciar o pedido entre hoje e amanhã?', escreveu Zampieri no dia 8 de novembro.
João Ferreira respondeu. 'Estou fora de Cuiabá, mas a partir de terça-feira próxima, dia 14/11, estarei em Cuiabá."
A PF apurou que o caso não era formalmente patrocinado por Zampieri, mas por outros dois advogados - Flaviano Kleber Taques Figueiredo e Marcelo Pereira de Lucena. Para os investigadores, a atuação 'informal' do lobista 'comprova que ele atuava não apenas em processos seus, como também intermediava feitos de outros advogados, mediante recebimento de parte da vantagem indevida destinada ao desembargador'.
Os agentes verificaram que no dia 20 de outubro, a desembargadora Nilza Maria Pôssas, relatora em substituição, havia decidido sobre um recurso com deferimento de pedido antecipatório. Contra a decisão de Nilza, que contrariava os interesses do lobista, foi interposto o agravo interno citado nos diálogos pelo advogado Flaviano Figueiredo.
'O rapaz está desesperado'
Logo após o envio da mensagem ao desembargador, Zampieri fez contato com Flaviano. Ele comunicou ter falado com 'o magistrado agora e que a decisão esperada deve sair hoje, no final do dia, ou amanhã'. No entanto, diversamente do esperado, João Ferreira indeferiu o pedido formulado. Para investigadores, a negativa do desembargador pode ter sido sua estratégia para forçar o repasse da propina.
Manifestando 'apreensão', segundo a PF.,Flaviano Kleber Taques ligou diretamente em 11 de novembro para Zampieri, que respondeu. "Eu já vi que foi indeferido. Vou cuidar disso amanhã para você. Vou tentar arrumar amanhã."
A investigação mostra que no dia 13 de novembro, dois dias depois, o lobista foi ao Tribunal de Justiça 'para tentar resolver pessoalmente a situação, conforme fora prometido'. Naquele mesmo dia, sustenta a PF, Flaviano encaminhou arquivo nominado 'Protocolo ED', indicando a protocolização de recurso de embargos de declaração. O advogado pediu urgência na apreciação do pleito.
'O rapaz está desesperado', escreveu o lobista ao desembargador, provavelmente sobre Flaviano.
Confirmada a decisão favorável de João Ferreira, o lobista escreveu para Flaviano. 'Consegue os 250 para amanhã?'. Para a PF, essa mensagem reforça a suspeita de que a quantia de R$ 250 mil seria o valor combinado a título propina para o magistrado.
Como sua pergunta sobre o dinheiro ficou sem resposta, Zampieri 'cobrou incisivamente o advogado no dia 17 de novembro. 'Flaviano, hoje preciso muito da sua atenção meu amigo'.
O lobista disse. "Já recebi duas ligações agora pela manhã. Não consigo deixar de atender essa pessoa hoje." - referência ao desembargador.
'Boa noite, desembargador'
Para a PF, a conversa, 'em caráter claramente cifrado', se reporta manifestamente ao diálogo anterior, em que Roberto Zampieri pedia o pagamento da propina combinada com o advogado.
Naquele mesmo dia, pouco depois, Zampieri voltou a cobrar Flaviano Taques e passou ao advogado o número de uma conta sua no banco. 'Desculpe a perturbação, precisamos pagar as novilhas, Veja se consegue 150 hoje, na outra semana passa o restante.'
A PF fez uma cronologia e desdobramentos do caso.
- Em 5 de novembro de 2023, Flaviano envia minuta de agravo a Zampieri;
- Oito de novembro de 2023: Zampieri envia minuta do mesmo agravo para o desembargador, ao tempo em que mostra o relógio de luxo Patek Philippe, avaliado em quase meio milhão de reais;
- Em 9 de novembro 2023, o magistrado João Ferreira Filho nega provimento ao agravo interno, 'provavelmente, por estar descontente com a sequência de pagamentos';
- 13 de novembro de 2023: Zampieri conversa pessoalmente com o desembargador às 19hs no Gabinete do Tribunal de Justiça de Mato Grosso, e Flaviano apresenta recurso de embargos de declarações;
- 14 de novembro de 2023: Zampieri conversa com desembargador João Ferreira Filho sobre valores que teriam sido pagos pelo 'rapaz desesperado', e salienta que o desembargador não precisava ter se aborrecido, pois apenas não queria 'levar picado', prontificando-se a levar de imediato ou a transferir a quantia combinada;
- 16 de novembro: o desembargador acolhe os embargos de declaração, favorecendo a causa defendida por Flaviano.
No dia 27 de novembro, o lobista prosseguiu com os contatos diretos com o desembargador, 'a comprovar a efetiva existência de proximidade e de amizade íntima, enviando mensagens e interagindo com o magistrado em horário noturno, fora do expediente forense e por meios não oficiais'.
No dia 27, Zampieri envia mensagem a João Ferreira, indagando-o se poderia ir pessoalmente à casa do magistrado.
Eram 22h30.
Zampieri: Boa noite, desembargador. Tudo bem com o senhor? Estou em Campo Novo dos Parecis, vim atender um cliente. O senhor poderia me receber amanhã, antes da sessão?
Desembargador: Sim
Em 30 de novembro. 'Tudo bem?', escreveu o lobista a João Ferreira. 'Simbol. Posso passar na casa do senhor hoje?'
Desembargador. 'Simbol'
A PF assinala que a sequência de diálogos 'evidencia que a conversa era a continuação da cobrança dos duzentos e cinquenta mil reais'. "Zampieri dá a Flaviano a opção de transferir ao menos R$ 150 mil de imediato, deixando para pagar os cem mil reais restantes na semana subsequente."
Os investigadores supõem que a intensa comunicação entre lobista e magistrado 'indicam, para além da estranha proximidade entre os dois, a provável prolação de decisões judiciais mediante pagamento de vantagens indevidas'.
O acesso aos diálogos foi obtido a partir da análise do arquivo estocado no celular do lobista, após ordem da 12.ª Vara Criminal de Cuiabá para quebra de sigilo de Zampieri. "Foram observadas interações diretas entre o advogado e o desembargador."
Os diálogos encerraram em 5 de dezembro de 2023. O lobista foi executado a tiros naquele dia.
A PF sustenta que o teor das conversas reforça suspeitas de:
- Relação de amizade íntima entre o desembargador e o lobista;
- Tratativas sobre processos que seriam colocados na pauta de julgamento na Corte estadual com defesa de tese jurídica pelo advogado diretamente por aplicativo de mensagens, e não pelas vias convencionais de manifestação;
- Acesso à casa do desembargador, com encontros pessoais em horário noturno, a indicar a entrega pessoal de algo que não poderia ser repassado de maneira mediata ou eletrônica
- Pedidos diretos para que o desembargador apreciasse recursos no dia e hora indicados pelo advogado, os quais foram posteriormente acolhidos pelo magistrado
- Recebimento de vantagens indevidas pelo desembargador, caracterizado pelo possível recebimento de relógio do modelo Patek Philippe, dado pelo advogado Roberto Zampieri, avaliado em quase meio milhão de reais;
- Possível recebimento de dinheiro em espécie pelo desembargador entregue pelo advogado Zampieri em sua residência, 'em montante total, e não picado'
- Operações financeiras entre a Agropecuária Cuyabá, da qual Roberto Zampieri era sócio, com terceiros que, posteriormente, realizaram o pagamento de boletos atinentes a prestações de imóveis adquiridos pelo desembargador.
Lionel Messi
Outros diálogos, datados de 8 de novembro de 2023, mostram que o lobista, 'conhecedor dos hábitos de consumo do desembargador,' enviou uma mensagem a João Ferreira na qual indagava se o magistrado conhecia determinada marca de relógios. João Ferreira respondeu 'ato contínuo, que de fato conhecia a marca, inclusive dando detalhes de outros modelos fornecidos pelo mesmo fabricante'.
Zampieri informou que iria levar o relógio da marca Patek Philippe ao magistrado para que ele pudesse conferir.
"Segundo consulta em fontes abertas, o modelo teria sido utilizado pelo jogador de futebol Lionel Messi em agosto de 2023, em uma cerimônia esportiva, e custaria em torno de U$ 75.700,00, o que equivale, atualmente, a aproximadamente R$ 429 mil", assinala a PF.
Logo após encaminhar a mensagem sobre o relógio, no mesmo contexto dos diálogos, Zampieri pediu ao desembargador que apreciasse 'aquele caso' com urgência, entre 'hoje e amanhã'.