A 7ª Vara Criminal de Cuiabá condenou o ex-defensor público-geral de Mato Grosso, André Luiz Prieto, a dez anos de prisão pelo crime de peculato por meio do superfaturamento de voos fretados com recursos da Defensoria Estadual. Em sentença de 42 páginas, o juiz Jean Garcia de Freitas Bezerra atribuiu ao ex-defensor-geral 'deslealdade funcional' que atingiu 'um patamar de verdadeira traição ao mandato público e à missão institucional da Defensoria Pública, tornando a sua culpabilidade sobremaneira censurável'.
A sentença destaca um prejuízo de R$ 220 mil ao Tesouro estadual por causa do sobrepreço pago pela instituição por horas de voo fretado contratadas junto a uma agência de turismo, do empresário Lucimar Araújo Bastos. Além da pena de prisão, Prieto foi condenado à perda do cargo público. Bastos pegou 7 anos e meio. Ambos poderão recorrer da decisão em liberdade.
Até a publicação deste texto, o Estadão pediu manifestação da Defensoria Pública de Mato Grosso e buscou contato com a defesa dos acusados, mas sem sucesso. O espaço está aberto.
Nos autos do processo, a Defensoria, em nome do ex-chefe, requereu sua absolvição alegando 'ausência de dolo ou insuficiência probatória'. Subsidiariamente - em caso de condenação, o que acabou ocorrendo -, a Defensoria pleiteou a desclassificação para peculato culposo e reconhecimento de crime continuado.
Luciomar Bastos, por meio de seu advogado, pediu absolvição.
Segundo a ação penal, em 21 de fevereiro de 2011, a Defensoria Pública, representada por Prieto, celebrou com a empresa Mundial Viagens e Turismo Ltda., representada por Luciomar Bastos, o contrato 004/2001, que tinha por objeto 'a contratação de agência especializada para futuro e eventual fretamento de aeronaves para atender a demanda da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso'.
Com base no contrato, a Defensoria passou a utilizar-se dos serviços de voos adquiridos junto à Mundial para viagens a diversas cidades do Estado. A investigação aponta que Prieto e Bastos 'fizeram uso indevido de dinheiro público, causando um prejuízo de R$ 220 mil à Defensoria Pública por meio de fraudes'. Também teriam ocorrido desembolsos da Defensoria por voos inexistentes.
As irregularidades, destaca a sentença, incluíram o superfaturamento de 104 horas de voo em aeronave bimotor, resultando em um dano de R$ 161.200,00, e o superfaturamento de 30 horas de voo em aeronave monomotor, totalizando R$ 35.700.
O Ministério Público identificou 'pagamento de R$ 15.479,00 no sistema Fiplan sem qualquer justificativa em faturas ou notas de empenho'. O valor total do prejuízo, corrigido a partir de julho de 2011, é estimado em R$ 220 mil.
"A decretação da perda da função pública do réu André Luiz Prieto, à época dos fatos Defensor Público-Geral do Estado de Mato Grosso, encontra respaldo legal, constituindo consequência proporcional à gravidade da conduta dolosa praticada em flagrante violação aos deveres inerentes ao cargo", assinalou o juiz Jean Garcia de Freitas Bezerra.
Para o magistrado, 'restou plenamente comprovado que o réu, enquanto ordenador de despesas e dirigente máximo da Defensoria Pública, praticou condutas dolosas e reiteradas, consistentes em autorizar e coordenar o pagamento de faturas superfaturadas e até mesmo de voos inexistentes, em conluio com terceiros, resultando no desvio de significativas quantias dos cofres públicos'.
Segundo o juiz, 'a conduta de André Prieto não se limitou a omissões ou falhas administrativas, mas evidenciou um nítido desvio de finalidade e quebra de confiança institucional, com clara intenção de lesar o erário, comportamento absolutamente incompatível com a permanência no exercício de função pública'.
Segundo a sentença, a condição de ordenador de despesas atribuía a Prieto 'o dever de fiscalizar e garantir a legalidade dos gastos, não podendo delegar integralmente essa responsabilidade ao ponto de se eximir do conhecimento das irregularidades flagrantes'.
Traição
O juiz avalia que Prieto 'valeu-se de seu poder hierárquico e da centralização administrativa para autorizar despesas superfaturadas e simular prestações de serviço inexistentes, com desvio direto de verbas públicas, comportamento que ultrapassa os limites da deslealdade funcional, para atingir um patamar de verdadeira traição ao mandato público e à missão institucional da Defensoria Pública, tornando a sua culpabilidade sobremaneira censurável'.
O ex-defensor-geral alegou que 'confiava' em Emanoel Rosa, seu chefe-de-gabinete à época. Para o juiz isso 'não o isenta da responsabilidade por atos que, como comprovado, eram manifestamente fraudulentos'. Uma testemunha arrolada pela própria defesa de Prieto confirmou que na 'gestão do réu se ouvia falar que havia desvios por superfaturamento' - e que, por essa razão, deixou o cargo comissionado.
"A alegação de perseguição interna e o resultado de absolvição em uma ação civil pública por improbidade administrativa, em razão da ausência de dolo específico, não têm o condão de afastar a responsabilidade penal", argumenta o magistrado. "O direito penal é autônomo e exige a prova do dolo, que, no peculato previsto no artigo 312 do Código Penal, consiste na vontade livre e consciente de apropriar-se ou desviar o bem público de que tem a posse em razão do cargo, para proveito próprio ou alheio."
A sentença ressalta que 'a prova produzida ao longo da instrução processual revela, com clareza, que o réu André Prieto, na qualidade de Defensor Público-Geral do Estado de Mato Grosso à época dos fatos, agiu com dolo direto na prática do crime de peculato, ao autorizar pagamentos superfaturados e fictícios em contratos de fretamento de aeronaves'.
"Longe de se tratar de falha administrativa ou confiança excessiva em subordinados, a conduta do acusado revelou-se consciente, reiterada e voltada à lesão ao erário."
"O cargo de Defensor Público-Geral, por sua natureza institucional, exige irrepreensível conduta moral, probidade administrativa e absoluto respeito aos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência", segue a sentença. "A atuação dolosa do réu configura violação direta e grave aos citados princípios, sobretudo o da moralidade administrativa, justificando, por consequência, a perda definitiva da função pública." O juiz está convencido que Prieto 'praticou o crime de peculato, em continuidade delitiva, na condição de funcionário público'.
A investigação do Ministério Público de Mato Grosso pontuou que o contrato com a agência de viagens e turismo foi firmado durante a 'expansão da Defensoria Pública no interior do Estado'. A Defensoria pagou por sete viagens com duração muito maior do que a necessária.
Para o magistrado, 'a conduta do réu André Luiz Prieto, conforme demonstrado, vai muito além de uma simples inobservância do dever de cuidado'. "A sistematicidade do superfaturamento em diversas faturas, a simulação de voos inexistentes, a utilização da aeronave pública para fins particulares e a centralização e controle direto dos pagamentos irregulares em seu gabinete, com as ordens de remanejamento de verbas e a recusa em fornecer documentação, indicam a clara e inequívoca intenção de desviar os recursos públicos em proveito próprio e alheio", assinalou Jean Bezerra.
Lucro fácil
Segundo a sentença, a Mundial Viagens garantia a emissão de faturas falsificadas com valores inflacionados, o que permitiu a 'apropriação dos montantes indevidamente pagos'. O juiz ressalta que, apenas no contrato com a Defensoria, os valores pagos eram incompatíveis com a média de mercado e com mais horas no trajeto, 'chegando a um incremento de até oito vezes as horas necessárias para um mesmo trecho'.
O juiz crava na sentença que 'o motivo do crime restringiu-se em obter lucro fácil, valendo-se da facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário público, o qual já é punido pela própria tipicidade'.
Jean Bezerra detalha a trama na Defensoria. "As circunstâncias do crime igualmente se mostram gravosas. O réu não apenas se aproveitou da estrutura hierárquica e da autonomia administrativa da Defensoria Pública, como concentrou no Gabinete do Defensor Público-Geral toda a tramitação dos processos de pagamento, à margem dos trâmites ordinários, conforme relato do então gestor financeiro Walter de Arruda Fortes, que chegou a ser exonerado após questionamentos internos. As faturas eram remetidas em envelope lacrado e com atesto do chefe de gabinete, sem controle da coordenadoria financeira, o que demonstra um ambiente institucional deliberadamente blindado para possibilitar e perpetuar as irregularidades, sinal de que a atuação do réu não foi isolada ou episódica, mas parte de um esquema meticulosamente estruturado para fraudar o erário."
Ainda segundo o juiz, 'os valores das fraudes foram maquiados com artifícios documentais e atrasos deliberados na entrega de comprovantes, o que revela sofisticação e planejamento ardiloso para dificultar a fiscalização interna e posterior apuração das condutas, de modo que merece valoração negativa'.
O empresário Luciomar Bastos, anota o juiz, subcontratava os voos de outras empresas com valores de mercado, e lucrava com a diferença dos pagamentos superfaturados pela Defensoria.
'Fique quieto'
Durante a fase de instrução, o então gestor financeiro da Defensoria Pública confirmou que chegavam faturas de pagamento de viagens sem que houvesse provas de que o serviço havia sido prestado de fato. Na condição de testemunha, o ex-gestor disse que chegou a confrontar Emanoel Rosa, então chefe de gabinete de Prieto. "Fique quieto, isto é sigiloso e ficará em off", teria respondido Rosa. As despesas com os voos fretados, segundo ele, ocorriam integralmente no gabinete do defensor público-geral.
De acordo com o juiz, a 'sistematicidade das fraudes aponta não apenas para um descuido na prestação de contas da instituição, mas para um esquema deliberado'.
"A prova produzida ao longo da instrução processual revela, com clareza, que o réu André Luiz Prieto, na qualidade de defensor público-geral do Estado de Mato Grosso à época dos fatos, agiu com dolo direto na prática do crime de peculato, ao autorizar pagamentos superfaturados e fictícios em contratos de fretamento de aeronave", sustenta o juiz.
Antes de analisar o mérito, o juiz advertiu sobre a conduta de André Luiz Prieto ao longo do processo como 'protelatória e pouco colaborativa'. "Desde as primeiras fases da instrução, observou-se a ausência de zelo no cumprimento de seu dever de manter o endereço atualizado nos autos, circunstância que culminou em diversas tentativas frustradas de localização, inclusive com a certificação de que seu nome sequer constava na portaria do condomínio em que afirmava residir."
O magistrado destaca que o ex-defensor protelou a apresentação das alegações finais, renunciando aos advogados constituídos e pedindo a prorrogação do prazo para a constituição de nova defesa técnica. "Em vez de contribuir para o encerramento da fase instrutória, optou o réu por apresentar múltiplos requerimentos voltados a suscitar rediscussão sobre temas já decididos de forma fundamentada, como a alegada nulidade da revelia, bem como a suposta incompetência deste juízo."
A defesa argumentou que, uma vez que os fatos se deram enquanto André Luiz Prieto era defensor-geral, a competência para o julgamento caberia ao Tribunal de Justiça de Mato Grosso. No entanto, a decisão da 7ª Vara Criminal afirma que a competência do juízo de primeiro grau foi imposta pelo próprio tribunal e que não há vício ou nulidade a ser reparado.
"Desse modo, os diversos requerimentos formulados pela defesa não apenas se mostraram infundados, como revelam verdadeiro desvio da finalidade processual, gerando entraves à prestação jurisdicional célere e efetiva", concluiu o juiz.